segunda-feira, 4 de junho de 2007

O caminho.

Ele parou. Pela primeira vez ficou em dúvida: deveria matá-la? Talvez ela nem o tivesse desrespeitado, poderia ser mesmo só um novo amigo. Olhou pra ela. Sentiu amor ao lembrar de como era seu rosto antes, parecia um anjo. Fechou os olhos, deu mais um soco. Deu bem mais fraco, o rosto dela está desfigurado, percebeu que tinha exagerado. “E se ele é mesmo só um amigo?”, falou baixinho, quase chorando. Olhou pra ela novamente. Sabia que tinha feito uma merda.

Não era a primeira vez que ele batia nela. Isso acontecia com freqüência e muitos diziam que ela gostava de sofrer. Coisas pequenas o deixavam nervoso. Suas veias pulavam do pescoço e dos braços e seus olhos queimavam de ódio. Quando ele ficava assim, antes mesmo de apanhar, ela amolecia o corpo, com isso sentia menos dor. E já estava tão acostumada com sua mão pesada que conseguia pensar sobre as compras do mês enquanto apanhava. Mas desta vez foi diferente. Enquanto ela pensava nas contas atrasadas da casa, ele bateu com tanta força, com tanta vontade que ela parou de pensar. Parou completamente.

Sabia que tinha feito uma merda. Ela nunca merecera sequer uma alteração de voz, talvez fosse isso que o incomodasse tanto. Toda aquela delicadeza e subserviência, não era possível que ela fosse tão imaculada assim. O sentimento dele oscilava por causa disso, tinha certeza. Como poderia amar completamente alguém tão superior a ele? Era prazeroso tirar sangue de algo tão puro. Mas o arrependimento era inevitável. E ela sempre perdoou, sem ao menos hesitar. Um anjo.

Agora ele olha seu corpo estirado, irreconhecível e imóvel. Pega um pano qualquer e tenta limpar o rosto dela. Não adianta, ela parece mais morta ainda. Ele chora. Matou seu anjo e não há perdão pra isso.

quinta-feira, 24 de maio de 2007

Derby Azul e fósforo.

“Já lhe disse tantas vezes...Ou a senhora pára, ou sua saúde poderá sofrer graves conseqüências...”, mais uma vez esse médico idiota vem me falar de possibilidades. Sinto tanto nojo dele, da roupa limpa e do seu sorriso amarelado que poderia dá-lhe um tiro à queima roupa, olhando em seus olhos para que ele visse em meu rosto a satisfação que esse ato me traria. Médico estúpido. Só o que gasto com uma única consulta eu poderia comprar 40 carteiras de Derby Azul. Não, na verdade eu compraria 38 carteiras de Derby Azul e 25 caixinhas de fósforo. Seriam 760 cigarros e 1250 palitos de fósforo, um verdadeiro sonho. Não daria pra ter uma segunda chance de acender cada um dos 760 cigarros, mas 25 anos fumando uma carteira por dia serviu para que eu pegasse tão bem o jeito de acendê-los que existiria até a possibilidade de sobrarem 490 palitos de fósforo. Um sonho, realmente.

Mas agora esse maldito câncer e esse médico inútil querem que eu me desfaça do maior prazer da minha vida. Prefiro morrer fumando a viver meus últimos dias fazendo exercícios físicos, assistindo ao programa da Ana Maria Braga , indo a Igreja e dançando forró com velhos horríveis. Querem me envelhecer a força e tirar de mim a satisfação de fumar meu Derby Azul na janela do meu quarto, tomando um café e pensando nas coisas boas que vivi na juventude. Nem imagino meu cotidiano sem esses momentos, seria tão tedioso. Eu morreria de tristeza, com certeza. Mesmo assim ele quer que eu largue meu Derby Azul.

Eu nunca tive filhos. Casei duas vezes, dois sociopatas. Só não fui assassinada porque sempre fui tão louca quanto meus companheiros. Era tão neurótica, sofria de continuas crises de nervos, que era mais provável que eu matasse um deles. Com a menopausa tudo mudou, fiquei tão calma e serena que parece que vivo constantemente chapada. Olha que eu não fumo maconha, nunca fumei, mas um dos meus maridos fumava por isso sei o quão tranqüila fica uma pessoa chapada. Mas de cigarro eu gosto. Não qualquer um, só do Derby Azul . Quando o fumei pela primeira vez achei ruim, gosto muito forte. Mas depois ele começou a descer para o pulmão mais gostoso que o ar. Incrível mesmo. Hoje quando acordo só fico feliz depois que olho pra cabeceira da cama e vejo minha carteira de Derby Azul e a caixinha de fósforo, me esperando para o primeiro trago do dia. Momento sublime.

“Olha, a senhora precisa fazer um tratamento. Não pode ficar brincando com a saúde. A vida na terceira idade é muito delicada, mas também pode ser muito divertida...”, ele continua falando. Não consigo prestar atenção no que ele diz, um monte de baboseiras. Além do mais se eu morrer quem vai sentir falta? Não tenho amigos, nem família. Acho que nem terei um enterro. Se morto não fedesse eu ficaria para sempre no apartamento, morta ao lado de um cinzeiro cheio de bitucas e palitinhos. Acho esse fim perfeito pra mim, sinceramente.”Promete que a senhora vai ser cuidar, promete?”, eu olho pra ele e aceno com a cabeça que sim, finjo que sou uma velha boba. Saio da sala dele, pago a consulta e o exame para a secretária,ela me dá o troco: R$ 5,00. Perfeito, duas carteiras de Derby Azul. O fósforo eu já tenho.

sábado, 19 de maio de 2007

A foda sem zíper* de Maria Helena.

Maria Helena finalmente vai a uma festa. Não uma tão legal quanto à dos seus pensamentos, mas nem por isso as coisas deixam de ser divertidas. Saia curta, blusa decotada, salto alto e maquiagem. Sente-se bonita, gostosa. A música é desagradável e o lugar também, só que isso pouco importa. Maria Helena nunca combina de se encontrar com alguém, sempre há algum conhecido e se não há dá-se um jeito. Além do mais, ela não quer conversar. A intenção é ficar louca, dançar freneticamente e ir pra casa satisfeita. Assim já seria perfeito. Maria Helena quer diversão livre e não precisa de ninguém pra isso.

Três da madrugada. Não encontrou nenhum conhecido e dança sozinha, num canto da pista. Ninguém se aproximou dela. Talvez ainda não tenham reparado em seus seios, ou em suas coxas. Deu um tempo na bebida, seu dinheiro é suficiente apenas para mais duas doses e o táxi. Duas doses, pouca merda. A satisfação é quase inatingível para Maria Helena quando restam apenas quatro dedos de uma bebida barata qualquer. “Se fosse um whisky fodido, aí sim!”. De repente sente sono. Ela pensa seriamente em ir pra casa. Mas não antes das duas doses.

Vai ao banheiro, a maquiagem tá borrada. Um cubículo, sem fechadura. Passa o lápis preto nos olhos. Alguém entra. Calça jeans, camisa branca, tênis. Um homem bonito, gostoso. Eles se olham, estão sozinhos dentro de um cubículo. “Oi.”, “oi.”. Ela não sai, decide ficar lá. Ele percebe, olha pra ela de um jeito sacana. Maria Helena sorri de um jeito sacana. Espera ansiosa por uma reação sacana. Ele não desaponta. Pega Maria pela cintura, dá um beijo em seu pescoço. Ela geme. A saia curta ajuda. Abaixa a calça jeans, e mete. Mete com vontade. Ela geme. Geme. Alguém tenta entrar no banheiro. Ele dá uma porrada na porta e gozam quase ao mesmo tempo. Pronto. Ele levanta a calça. Ela abaixa a saia. “Tchau”, “tchau”.

Maria Helena passa batom, urina e sai. A última dose desce muito gostosa. Vai embora pra casa, sente-se feliz. Deita na cama, olha pro teto. “A noite foi perfeita” e Maria Helena dorme como um anjo.

* Peguei emprestado a idéia de foda sem zíper do livro Medo de Voar, de Erica Jong. Segundo a autora uma foda sem zíper é "uma foda sem racionalização, porque não existe conversa nenhuma. A foda sem zíper é absolutamente pura. Acha-se livre de motivos posteriores. Não há disputa de forças. O homem não está 'tomando' e a mulher não está 'dando'. Ninguém está querendo cornear um marido ou humilhar uma esposa. Ninguém está tentando provar coisa nenhuma, ou tirar nada de ninguém. A foda sem zíper é a coisa mais pura que existe.".

quarta-feira, 16 de maio de 2007

O ócio de Maria Helena

Maria Helena leva uma vida inútil. Sentada no banco da parada de ônibus pensa porque mora naquela cidade, pensa um pouco mais e sente sono. Que droga de vida. O ônibus demora tanto. Por um segundo pensa que ficará ali até seu ultimo dia, esperando. Olha pro lado e vê uma criança magra, negra e triste. Sente vergonha de achar sua vida uma droga. O mundo é nojento em deixar alguém tão pequeno se acabar aos poucos. Que droga de mundo.

Quando chega em casa não sabe o que fazer. Pensa no quanto seria legal ir a uma festa, beber até ficar descontrolada, fumar três carteiras de cigarro. Conversar, beber e fumar até a voz sumir. Só que não dá, não há nenhuma festa. E festa legal desse jeito só acontece em seus pensamentos. Seus amigos estão ocupados, não há pra quem ligar. Todos estão fazendo alguma coisa diferente, mas o objetivo é o mesmo: ganhar dinheiro. Isso também faz Maria Helena sentir nojo, mas ela entende. Pensa que pra ir a uma festa legal seria necessário muito dinheiro. “É, acho que preciso de um emprego...”, sonha.

As horas vão passando. A TV tá ligada, mas tudo é ridículo demais pra prender a atenção de Maria. Ela não sente vontade de escutar música, não naquele momento. As leituras não interessam, ela não quer aprender, só queria ocupar o tempo com algo agradável, mas que não exigisse absolutamente nada dela. Maria Helena sente sono. Por um momento olha pra TV com um pouco mais de afinco. Está passando um programa de auditório cujo apresentador é um psicólogo esforçado em resolver um “grave” problema de sua paciente que chora excessivamente na frente da platéia e das câmeras. Seu problema parece comover a todos, mas Maria Helena ainda não sabe do que se trata até prestar atenção na tarja na parte inferior do televisor: “Mulher sofrida confessa:’Não consigo segurar gases em nenhuma situação’”. Maria Helena ri sozinha, nunca viu nada tão ridículo em toda sua vida. Não consegue entender porque alguém iria a programa televisivo expor um problema tão constrangedor como este. “Isso só pode ser uma armação. Só pode ser!”, indigna-se. Depois de tal absurdo não há outra saída. Maria Helena vai dormir.

Na cama, olha pro teto. O ventilador faz um barulho repetitivo e isso a incomoda muito. Mas ela sempre dormiu com aquele barulho. Porque agora ele parece tão estrondoso? Na sua cabeça mil coisas supérfluas ganham vozes. Ela demora três horas pra pegar no sono. Mas antes de dormir ela lembra com tristeza que amanhã será a mesma coisa. E foi.

Prazer, Henry.

Conheci um cara interessante.
O nome dele é Henry Chinaski, mora nos Estados Unidos, mas é alemão. Pareceu-me meio amargurado. Me tratou mal, nem sequer olhou nos meus olhos. Talvez ele tenha vergonha da sua aparência, o corpo é atraente, mas o rosto é cheio de cicatrizes. Existe uma história triste por trás daquelas marcas horrendas que desfiguram o seu rosto, mas ele não fala nada a respeito, pelo menos não pra mim.

Ele não tem trabalho fixo, nem família. Vive a cada segundo, sempre porre. Não acabou a universidade, mas sabe demais a respeito do mundo. Fiquei sabendo que é escritor. Um maldito escritor. Parece não ter amigos, só gosta da embriaguez e das palavras. Olha ao redor com desprezo, ele só pode odiar a humanidade e tudo que ela expele. Pura merda, ele diria.

O Henry pode ser gay, sei lá. Dizem que não gosta de se aproximar das mulheres, mas tem fama de durão. E não existe gay durão, ou existe? Deve ser por causa das cicatrizes... Mas porque ele não pega uma puta? Por mais horrível que ele seja, uma puta pouco se importaria. E ele tem um charme, não sei dizer, acho que é sua excentricidade, tão impulsivo e desprezível, que dá até um tesão.

Ele entende. Não suporta a idéia de viver em sociedade, porque sabe que só querem usá-lo. Ele vive no submundo e vai viver lá pra sempre. Ele é imortal.
Quer conhecê-lo? Leia Misto-quente, de Bukowski.